terça-feira, 20 de novembro de 2007

1º Movimento: Renascida das Águas

"Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma."
(Sonho. Não sei Quem sou. - Fernado Pessoa - Parte I)






Um som úmido e vagaroso escorre lentamente pelos sentidos, inundando gelatinosamente todo o eu. As gotas despencam do alto como vontades suicidas que finalmente tem o encontro com o infinito aquoso de onde partiram, espalhando uma a uma o eco pelo oco que parece envolver todas elas. Os olhos se abrem viscosamente e com dificuldade vêem uma confusão de musgos e pedras que penumbram ao ser redor, como uma caverna pouco iluminada do interior de si mesmo. Deitada, é derrepente o peso. Todo o mundo empurrando gravemente o corpo contra o chão, ou a água. A sensação de esquecimento e solidão se aconchega no mesmo instante em que uma pressão enterrada, pulsando na profundidade do peito, bombeia para o resto das partes internas do corpo uma sensação pantanosa de litros e litros de uma pesada lama escorrida por dentro das veias. E enfim, é a brisa, o primeiro encontro com o ar gélido que rasga por dentro. Respira, o primeiro suspiro. Dolorido. Acordara no meio de uma inauguração de tudo aquilo o que viria a ser.


Uma passeata desordenada de pensamentos, uma coleção de imagens desconexas rodando em velocidade estonteante a possuem e lhe mostram pedaços recortados de inúmeras histórias que nada lhe significa. Vozes, rostos e cores impossíveis de serem nomeadas ou compreendidas. Sente-se ausente de si própria, um espírito que assiste seu próprio corpo debatendo-se contra qualquer forma de controle, um redemoinho de idéias abreviado por instantes de uma mansidão aquosa. Ela era aquela que renascia, aquela que se percebia ao lado de seus braços espasmos pernas, todo seu corpo atado por diversas voltas de um plástico transparente que parecia tapar todo seu desejo de não estar ali. Nada respondia. Os movimentos lhe pareciam ser apenas uma distante estrada que aumentava a cada gota pingada.


Como se um ímpeto lacinante explodisse em seu íntimo, ela fincou suas unhas naquilo que a envolvia, e como alguém que se conhece, se reconhece, retirou lentamente os excessos de seu corpo. Olhando em volta, não sabia, e nem podia, reconhecer a construção antiga na qual estava dentro, uma espécie de gruta ou túnel por onde passava um leito de água. O escuro cheiro molhado só era percebido pela presença tímida de um lampião acesso à meia força, sobre aquilo que identificou como sendo uma mesa, aparentemente de estudos. Ainda com a dificuldade de uma estátua marmorificada que decide se mover, ela tenta se levantar, e em vão, cai de bruço sobre o frio chão de pedra. O som das gotas parece gritar ao seu ouvido momentos de agonia que como flashes de pólvora das antigas máquinas fotográficas, acendem fragmentos de imagens em sua mente. “O que está acontecendo comigo?”, pensou apenas para perceber que pela primeira vez pensara algo por sua vontade “se é que consigo ter vontade”, se referindo ao descontrole que dominava seu corpo. Impulsionada pelos fortes espasmos que repuxavam suas costas e a vaziam arquear para traz, iniciou o arrastar-se em direção ao que parecia ser uma antiga poltrona em farrapos.


Deixando para trás um grosso rastro de água, se apoiou na poltrona e descansou em sua primeira sensação de segurança. Ofegante, pensava “onde estou?”, tentava lembrar-se de um nome, um endereço, um caminho o qual pudesse seguir, procurava qualquer imagem que lhe fosse familiar, mas sabia apenas pedras e penumbra de sua ausência. Seus músculos são, então, enrijecidos por um leve tremor que lhe sobe as costas e deixa seus pelos eriçados por todo o corpo, e logo, seus dentes de debatem um contra os outros. O frio. Era como se...


– Oh... vejo que acordou! – ouviu sem saber qual das imagens de sua cabeça que lhe falavam em uma voz mais ressecada.


Mas a dúvida se desfez com a revelação que rasgava a penumbra. Um homem calvo de meia idade, magro e levemente curvado pela longa duração de sua vida, caminhava em sua direção levando com dificuldade o peso arrastado de sua perna direita. A ela não restara nada há não ser o medo do desconhecido ou do não reconhecido, do pesadelo acordado dentro e agora vivido. A verdade é que não sabia sentir o assombro, pois não se lembrava de nenhuma palavra para nomear seu sentimento. Apenas sabia que se já havia sentido isso, o de agora era muito mais intenso. Tencionou todo seu corpo na esperança de fazê-lo uma couraça de proteção e apertou os olhos esperando tudo passar.


– É assim... no começo – disse o homem, agora mais próximo, que respirava com certa dificuldade enquanto se abaixava para pegar algo parecido com um cobertor, no canto da sala. A penumbra revelou a silhueta de uma Mulher acuada e assustada com o excesso do impalpável que lhe cercava, abraçando seus joelhos enquanto tremia, agora, não só de frio.



– Acalme-se – com as grossas mãos nos cabelos úmidos da Mulher e cobrindo-a – Você é... perfeita... – demonstrando em seus olhos o brilho do sucesso.


O homem parecia estar diante do mais sagrado dos segredos, parecia encantado com algo que apenas ele podia enxergar.


– Quem... quem é...? – tentou a Mulher, percebendo que as palavras pareciam com água, impossíveis de serem moldadas.


– Eu sei, eu sei... – respirou pesadamente – É difícil... Mas aos poucos você vai aprender... – andava entorno da Mulher apavorada por tal situação – Sou Anubius... Anubius...


Sem saber o porquê, a Mulher se sentiu mais calma ao poder nomear o que lhe causava tanto estranhamento, “esse homem... aqui... onde estou?”.



Após alguns segundos petrificado diante da Mulher, o nomeado Anubius deu um fanático sorriso e dirigiu-se até uma das paredes coberta de musgos, para de lá retirar, de dentro das frestas das pedras, algo embrulhado em um sujo veludo antes azulado. Como se carregasse a única criança de um mundo já desistido de inocência, Anubius parou diante da Mulher, colocou o veludo naquele colo ainda molhado e cuidadosamente abriu as várias camadas que recobriam um artefato. Um punhal. Um belo punhal. Três lâminas em um formato triangular, ornamentado com símbolos e pequenas carrancas. Ainda com a expressão de maravilhamento com o que presenciava, o velho homem alcançou delicadamente as mãos da Mulher e as trouxe de encontro com o punhal. O toque gélido do metal esfriado pelas pedras e as inúmeras texturas que foram gravadas e trabalhadas no cabo do punhal, chegaram como imagens aos sentidos da Mulher, que em um toque pode perceber toda a magnitude do que segurava. E foi ao presenciar esse entendimento, que com a volúpia da certeza, Anubius pronunciou:


– Est lak at’menon, Nefertiti? – e silenciou.


Seus olhos vidrados na Mulher pareciam abrir cada vez mais e seu sorriso se esticava pelo rosto. Ela, era apenas uma estranheza de cada vez mais não entender, era a dúvida e o pavor arraigado em sua face. E novamente a fala, só que agora com maior intensidade:


– Est lak at menon, Nefertiti? – e mais uma vez o nada.


E foi então que pesadas marcas de expressão surgiram por todo o rosto do velho que de um só movimento arrancou o punhal das mãos da Mulher, enegrecido de frustração.


O homem olhava o punhal e falava nervosamente palavras que ela jamais ouvira, uma outra forma de construir sentidos através do som, uma outra língua. Anubius rangia os dentes e olhava para a Mulher ali, parada, e logo depois balançava sua cabeça. Passava as mãos agoniadas pelo rosto, esfregando para limpar uma realidade que parecia não ter aceitado. E assim, parou. Calou-se e acalmou. Virou-se para a Mulher sentada e já com uma feição mais séria em seu antigo rosto, parou novamente diante dela. Levantou o punhal sobre sua própria cabeça, segurando-o firmemente com as duas mãos e começou a entoar novas palavras desconhecidas. O cântico que Anubius entoava em uma língua estranha e desconexa, expandia por dentro dos túneis e por dentro da Mulher, que desejando desesperadamente se mexer, somente conseguia acompanhar com os olhos o que lhe acontecia. E aconteceu. O punhal desceu como o machado de um carrasco, penetrando seu ombro esquerdo e o rasgando até parar em seu peito. E assim, a inédita dor. Era como se o mundo inteiro se afiasse e descesse com todo seu peso sobre ela, cindindo seu ser em dois, uma metade dor e a outra desespero. Seus olhos produziam umidade e seu ombro parecia pertencer cada vez menos a ela.


Se algum ser por ali vagasse, perdido, e presenciasse o gemido angustiado de uma Mulher imóvel acovardada por um calvo homem empunhando um grande punhal, ele sentiria a renegada pena e choraria. E de fato foi o que ocorreu. O surgimento de um choro infantil foi ouvido, um choro triste e sofrido. Melancólico. Um choro que já estava lá, só que devido a distância de seu choramingar, estava confuso em meio aos sons das águas e do cântico de Anubius. Mas agora ele era presente e se aproximava em grande velocidade. E Anubius sabia o que era. Gostaria de não saber, mais sabia. Tinha consciência de que aquela não era uma presença tomada pela pena. Em verdade, era um quase oposto. Um renegado do caminho da iluminação, um ser de apenas uma vontade.


Foi tudo muito rápido. Logo, aquilo que algum dia já fora o corpo de uma pequenina criança, mas que agora era unicamente uma cabeça sem pele e de um corpo difuso na falta de pernas e de braços atrofiados, subiu com seus dentes sobre a pele de Anubius. O choro invadiu os ouvidos da Mulher como um grito de mil agulhas, e talvez tenha sido isso que a fez acordar definitivamente e levantar-se de toda a imobilidade de sua vontade. Assistindo um duelo da fúria contra a sobrevivência, ela conseguiu se apoiar nas paredes antes que os dois corpos que se matavam despertassem a escuridão ao destruir o pequeno lampião. Envolvida pelo negro, ela caminhou em passos falhos seguindo a parede que agarrava. Fugia do ápice de seu terror. Aos poucos os sons da desordem foram diminuindo e o choro agudo se exauriu juntamente com os gritos. Tudo cessou. Agora, era apenas o silêncio e ela.

“É noite... uma noite quente... mais parece um meio dia escurecido” e olhou a lua em seu céu, que intensa, infiltrava sua luz esbranquiçada por entre as folhas das altas árvores. O túnel por onde com dificuldade caminhara, parecia ter desembocado em uma espécie de bosque ou mata, por onde o fluxo de água continuava, agora em céu aberto. Percebeu-se em meio de troncos e raízes. Seu corpo suava, exalava um cheiro forte da mistura do suor com o líquido que escorria da ferida de seu ombro pela sua pele nua e descalça, protegida apenas por um simples cobertor. O ombro lancinava avisos de dor, mas ela sabia que não podia parar, “não agora”. Não depois do que presenciou. E por isso corria desconexamente e sem rumo por entre uma infinidade de galhos e plantas que a faziam cair quase a cada passo. Seu corpo parecia se lembrar aos poucos de toda sua capacidade. Corria a procura de algo que não sabia nomear, algo que quando encontrasse saberia que ali deveria ficar. Podia sentir a terra molhada sob seus pés, o barro entrando entre os dedos que a sustentavam. A lua, em sua magnitude, iluminava parcialmente e era como um guia para lugar nenhum, revelando um descaminho para a Mulher que fugia. A corrida ofegante fez com que ela cruzasse quase desapercebidamente uma estrada, algo não natural marcado com asfalto. Sabia que ali estava uma chance, mas não sabia do que.


E então, ouviu. Viu. Uma forte luz por entre as folhas acompanhada pelo som de um motor. A Mulher em instinto se escondeu e viu que uma caminhonete seguia vagarosamente por aquela pista, tão devagar que ao passar perto da Mulher, iluminou-a agachada, escondida infantilmente atrás de um arbusto. De pronto, a caminhonete parou. A porta se abriu e um homem de farda marrom e botas, apareceu.



– Ei você, o que está fazendo aqui!? – disse a voz de um jovem homem, mas não obteve nenhuma resposta – Você sabia que parque está fechado? – pegando a lanterna em sua cintura e iluminando a face da Mulher assustada.


Os olhos dele viram que aquela Mulher enrolada em um cobertor, possuía uma enorme ferida em seu corpo.


– Meu deus! O que houve com você?! – e se aproximou dela.


A Mulher, cansada e trêmula, não ofereceu a mínima resistência quando o homem a pegou e a colocou na caminhonete, percebendo ali um pequeno instante de conforto. Apenas seu olhar, molhado, demonstrava o pavor de um animal acuado.


– Não tenha medo, sou um guarda florestal. Vou te levar daqui. Fique calma – disse para a Mulher que parecia assistir a tudo como se fosse um filme do qual não participava. “Guarda... florestal...” pensava ela, fracamente.



Logo, os dois chegaram a uma pequena cabana, estacionada ao lado da pista. Parecia ser um centro de operações daquela milícia florestal.


– Pablo. Eu sou o Pablo. Tenente Pablo – disse nervoso, o jovem guarda enquanto ajudava a Mulher a descer da alta caminhonete.


Ela, assustada, andava amparada pelo guarda e com dificuldade entrava na cabana. Ali, dois cômodos. Uma sala de atendimento e um curto escritório, o qual ele a colocou sentada. A cada objeto visto, cada foto, livros e recados sobre a mesa, a Mulher procurava o que lhe faltara até agora: sentido. Buscava comparar o que via com as insanas imagens que percorriam vertiginosamente sua cabeça, para quem sabe tecer alguma forma de entendimento sobre o que afinal estava lhe acontecendo. Mas apenas o medo e a vontade de fugir à assolavam.


– Aqui está, vista esse vestido e essas botas... foi tudo o que pude arranjar – e quando já saia do escritório, agoniado, disse – Você precisa de um hospital, moça... precisa mesmo. Se recomponha e eu te levarei até lá.



Ela ouviu. Estremeceu o corpo. Mesmo sem saber o porquê, não queria ir a um hospital. Sentiu-se capaz novamente, era como se ameaças a alimentassem. E então, vendo que o jovem Pablo estava fora da sala e de costas para preservar a pureza da moça, ela rapidamente abriu a primeira gaveta. Papéis. A segunda. Uma pistola negra. Na outra, dois rádios comunicadores. Seus olhos brilharam, e pela primeira vez viu a chance de colocar regias naquele destino e conduzi-lo para onde queria... para fora dali.


– Não se mexa... – ironicamente, sua primeira fala se remetia a uma condição há tão pouco passada – Não... não quero te machucar... – com a arma em punho.


– O que... o que você... – balbuciava o jovem tenente enquanto procurava entender porque apesar de saber ser capaz de dar dois passos, girar o braço ferido daquela Mulher e tomar sua arma, eles apenas a assistia saltar lentamente a janela e sumir por entre a escuridão da relva. Depois ele saberia o porque: Medo.


Assim, mais uma vez fugia, e a cada novo passo seu ombro a lembrava da existência de seu corpo no cansaço. Parou. Abriu o cobertor sobre o chão e dentro dele colocou seus recentes pertences. Um rápido nó, colocou sobre as costas e reiniciou sua corrida para lugar algum. O vestido cavado, rubro, detalhado em pequenas flores amarelas, terminava logo antes de seus joelhos, onde se encontravam com um grosso coturno de cavalaria, de couro negro e largamente afivelado, que agora marcava profundamente na lama, a velocidade da Mulher que corria.


Entre o ar expirado com força e a dor que caminhava para seu braço, ela parou e observou uma grande cerca que parecia separar aquele lugar de uma larga rodovia timidamente freqüentada por carros. Sua vontade de andar em torno da cerca até a saída, terminou quando percebeu que não a encontraria tão cedo. A Mulher parou, observou a altura e formato da cerca, se aproximou, lançou seus pertences para o outro lado e colocou sua mão para iniciar a escalada. No mesmo instante, sentiu como se um poderoso cavalo lhe acertasse um coice em seus peitos, sendo arremessada a longos metros da cerca. Energia. Assustada, levantou rapidamente como se esperando um próximo ataque, mas percebeu que fora a cerca que a impedira de subir. A dor que sentira não era somente isso, dor, era algo mais, uma sensação nova. Por algum motivo ela ainda continuava ali, sentindo-se da mesma forma, mesmo após o violento ataque que sofrera. Sem entender completamente o porquê, a Mulher caminhou novamente até a cerca, e agora com as duas mãos, segurou firmemente apenas para sentir pela segunda vez uma força que insistia em afastá-la dali. Sentiu que todos os tecidos que compunham seu corpo estavam repuxados, esticados e se contorcendo, sabia que a qualquer momento seu corpo iria se desfazer, e no momento onde toda a dor estava a meio passo no insuportável, ela viu que as fibras musculares e restos de pele que saltavam de seu ombro, estavam sendo de alguma forma, recondicionadas. Era como se em um brevíssimo momento todo desconforto orgânico que sentia tivesse cessado. E então, ela tocou o chão do outro lado. Durante os instantes em que esteve em contato com aquilo, a Mulher percebeu que de alguma forma seu corpo parecia se nutrir daquilo. “A eletricidade...”, pensou, “deveria ter me matado... mas não... nenhum arranhão”, olhando para seu ombro que agora estava completamente recomposto.




"Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.

Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei."
(Sonho. Não sei Quem sou. - Fernado Pessoa - Parte II )



Ainda com sua mente imersa nessas dúvidas de estranhamento, pensou “inferno, ele ainda deve estar atrás de mim” e recolhendo suas coisas voltou a correr. Atravessou a avenida ausente de carros e avançou em direção a algo que parecia ser alguns prédios, casas “e outros lugares onde eu possa me esconder”. Os diversos pontos pequeninos de luzes amareladas que se estendiam do distante até ela, lhe deixavam a impressão de estar diante de uma pequena cidade cercada por uma leve vegetação escura, e uma longa, e larga rua, indicava que ali estava uma entrada para aquele lugar. Parando por um instante para recuperar o ar que insistia em lhe faltar, notou que na intersecção da avenida com a rua que levava para aquele lugar, bem ao centro, havia uma espécie de um balão de trânsito onde uma grande placa de concreto estava fixada ao chão. A Mulher se aproximou vagarosamente e viu que aquela placa trazia, em seu, corpo símbolos e inscrições. Chegou mais perto e deixou com que seus olhos se acostumassem com a escuridão do local, e naquelas letra já um pouco apagadas, leu “Bem Vindo a Universidade Autônoma do México”.


Com a palma de sua mão parada sobre os gravados em alto relevo que lera, a Mulher parecia buscar em um compartimento distante de sua história, alguma imagem que lhe parecesse semelhante a essa que via.


– Por minha... minha raça... Por minha raça... falará o espírito – murmurou outras palavras que dali, lia com dificuldade.


Buscava sentido, mas a única coisa que sentia eram que peças de um infinito quebra cabeça pareciam estar sendo reveladas uma a uma, para que o tempo, um dia, parasse e se sentasse diante delas para montá-las. Mas até lá, a espera. A única coisa que podia fazer.


Seus pés doeram a dor da pela friccionada contra o couro cru do coturno que calçava quando voltou a correr, seguindo a rua que a levaria para dentro daquele lugar. ”Aqui... nesta... nesta universidade, eu tenho que conseguir um lugar para descansar... só assim vou finalmente começar a escavação para entender este meu passado tão nebuloso de mim”, e assim seguia tentando reconhecer cada novo lugar que visitava com seu olhar, mas era tudo desconhecido, os prédios, calçadas, ela, tudo escuridão. Ao longe, tomando a frente de sol que iniciava timidamente seu martírio diário, algo lhe chamou a atenção: uma imensa fachada de um prédio completamente tomada por um imenso mosaico colorido. Cruzando uma extensa praça que abraçava aquele prédio, caminhou até próximo a porta de entrada e viu, ali sentado, um senhor de cinqüenta e parados anos de idade. O homem em um uniforme azul, ainda que dormindo, parecia guardar a entrada principal daquele prédio.


– Olá... é... Boa noite... – disse a Mulher, com uma estranha dificuldade em sua garganta que a fez desafinar levemente, quando se aproximou do homem que de súbito assustou-se e levantou a cabeça que antes pendia para o lado.

– Ahãn... ah, sim, sim... olá. É... – esfregando os olhos – ... o que você quer, moça? Que horas são?
– É... eu... – falou a Mulher, se esforçando para buscar uma certa ordenação de pensamentos – ... eu sou estudante... de um outro lugar... cheguei agora aqui e... – engolindo com dificuldade, completou – Aonde fica o lugar onde todos dormem?


O guarda, ainda se acostumando com o estado de vigília, respondeu:


– Onde todos dormem? Ah, você diz o dormitório... dos estudantes, não é? Olha, moça, você segue essa rua e vira lá embaixo e você vai ver o lugar – disse após confirmar no relógio que eram cinco e cinqüenta da madrugada – Logo o sol sairá por completo e você verá com mais facilidade.

– Ah... obrigada – agradeceu a Mulher, que rapidamente deu as costas àquele senhor e seguiu desvendando o pouco que ainda restava das sombras.


A Mulher, que ainda há pouco fugira de algo que nem conseguia descrever, agora caminhava demoradamente tentando decifrar aquele acumulado de ruas e vielas por onde construções surgiam desordenadamente. Não demorou muito para que o sol ocupasse as bordas do horizonte daquele lugar, entregando ao dia um céu limpo e azulado. Logo, a Mulher começou a notar que pessoas apareciam pelas ruas, ainda que poucas, desfilando como zumbis recém criados. Eram moças, rapazes, livros e carros que pareciam compor o início de uma sinfonia desprovida de ordem. Seus ouvidos estranhavam aquela manhã. Algumas ruas a frente, uma construção imponente e glamurosa lhe chamou a atenção. Um casarão em um estilo antigo qualquer que levava as inscrições de “Biblioteca... Central” no alto de sua entrada. Parada, diante daquela enorme acumulado de concreto, a Mulher foi tomada por uma vontade de entrar naquele lugar que lhe parecia um templo. Aos poucos passos, entrou e assistiu a um espetacular despertar dos inúmeros detalhes arquitetônicos que ali existiam. Não sabia porque, mas aquilo lhe fascinava, sentia-se como que acariciada pelas altas colunas entalhadas que sustentavam aquele lugar. Uma sensação de bem estar que foi rapidamente quebrada pelo desconforto que escorria pelo interior de seu corpo, algo como uma sensação de músculos sendo repuxados pelo lado de dentro de sua barriga. A fome. Virou-se e como quem é dominado por um instinto primitivo, saiu a procura de um local onde pudesse fazer uma refeição, o que não demorou, já que em frente havia uma espécie de refeitório. Entrando cuidadosamente, a Mulher viu que ali haviam quilos e quilos de comida e muitas pessoas caminhavam de um lado para o outro carregando bandejas repletas. Sem hesitação, a Mulher se disfarçou em uma fila e logo depois terminava de mastigar o último pedaço de algo que nem sabia o nome. Levantou-se e...


– Moça? O caixa é aqui? – disse uma senhora desconfiada apontando para uma bancada em sua frente.


– Oi... é que eu não sou daqui, cheguei hoje e não sabia que tinha que pagar... eu sou estudante.
– Ah... sei... entendo – disse a senhora, abrindo um quase sorriso – tudo bem... vamos fazer assim, você volta aqui amanhã e paga, tá certo?
– Uhum – disse a Mulher assentindo curtamente com a cabeça – Obrigada... – e saiu olhando timidamente para o chão.





"Lapso da consciência entre ilusões,

Fantasmas me limitam e me contêm.

Dorme insciente de alheios corações,

Coração de ninguém".

(Sonho. Não sei Quem sou. - Fernado Pessoa - Parte III)




“Essa rua... não, muita gente...”


– Dois, três... – murmurava a Mulher, contando as vielas por onde passava.


"Um prédio... não, aqui não.... droga, preciso de um lugar”, pois sabia que em suas costas carregava um pequena trouxa de roupa recheada de objetos que furtara, entre eles uma arma de fogo “de um policial.. ele deve estar atrás de mim”. Escolheu uma rua e nela andaria até encontrar algo, qualquer coisa que pudesse lhe proteger. Olhou ao distante e viu um afastado galpão cercado por árvores de um início de mata. Se aproximou e rodeou o galpão com a intenção de encontrar uma forma de entrar nele, mas sem saber por que, sua atenção era sugada para as minúcias do tipo daquele terreno ou o para o assentamento “das fundações dessa construção erguidas neste típico solo arenoso”, pensou surpresa. Mas nada encontrou. Estava tudo trancado, tudo vedado pelo passado que ali parecia residir a um longo tempo. Estando preocupada com o conteúdo de sua trouxa de roupa, andou até um conjunto de árvore que ali desfilavam sua imobilidade centenária e com suas próprias mãos cavou um pequeno buraco no chão, enterrou seus únicos pertences e ali sentou-se.


Aonde estava ontem?”, se esforçava para lembrar o que sucedera aquela terrível noite em que acordou sem lembrança alguma. Em verdade, quando exigia alguma recordação mais profunda de sua memória, sentia com se mergulhasse em um tonel de leite, “tudo pegajosamente branco e úmido”. “... o que sou sem minhas memórias... onde estou sem meu passado...“ indagava-se. A Mulher não sabia por que, ela apenas era.


O tempo, que estava lhe negando todo um passado, passava rapidamente por ela levando horas, minutos e lembranças a girarem sem qualquer sentido sobre si mesmas. Para a Mulher, a impressão era de que havia passado toda uma vida sentada ao pé daquela árvore, mas havia sido apenas algumas horas, o suficiente para notar que o sol começava a apresentar os primeiros sinais da fadiga em brilhar por todo um dia. Ela sabia que precisava de um lugar para passar a noite que se aproximava e em breve se instalaria. Olhou cansada, novamente em direção ao galpão e viu “Será uma escada? É isso mesmo?” e levantou em direção ao que enxergava. Atrás de algumas caixas e encobertas por restos de fuligem e plantas, uma velha escada de madeira escondia sua vontade de subir. A Mulher então, ergueu pesadamente aquela grande escada até alcançar o telhado do galpão e subiu.



Tentando esconder os vestígios de sua escalada, a Mulher tentou, em vão, puxar a escada para cima do telhado. Todos os 3 metros daquela antiga madeira encharcada por alguma chuva recente, pareciam muito para os braços daquela Mulher. Mas então o medo de ser descoberta a fez sentir algo que até então lhe era desconhecido. As lembranças dos momentos de terror que passara ainda a pouco inundaram sua mente e a fizeram sentir seu peito esquentar como uma fornalha, enquanto leves espasmos percorriam seus músculos como uma corrente elétrica. E assim, como que por instinto, içou em um só movimento toda a escada para o alto daquele galpão. Parecia que seu corpo havia sido possuído por um espírito de força assustadora, e por um segundo, assim temeu que fosse. Ainda examinando com suas mãos o desenho de cada um dos músculos de seu braço, a Mulher notou um pequeno alçapão em meio aquela confusão de telhas, mofos e excrementos secos de pássaros. Caminhou até ele e tentou abri-lo, mas o cadeado que o trancava era forte o suficiente para impedir sua vontade de tentar novamente.





A Mulher já estava cansada de procurar um lugar para se esconder, cansada de olhar a cada instante para trás esperando ver seu medo ganhando forma e cor, e assim decidiu que ali sobre o telhado era um bom lugar para contemplar a noite que se aconchegava. A Mulher estava deitada sobre as telhas quando a noite chegou acobertando-lhe de estrelas.